05/10/2011

Os limites do CMN no mercado de derivativos

Por Jefferson Alvares

A outorga de competência ao Conselho Monetário Nacional (CMN) para disciplinar a negociação de contratos derivativos, por força da Medida Provisória (MP) 539, torna oportuna a discussão sobre a estrutura da regulação financeira brasileira. A inovação teria dupla finalidade: evitar a apreciação do real no mercado a vista via intervenção no mercado futuro (políticas monetária e cambial) e prevenir a exposição excessiva de agentes privados a perdas decorrentes de eventual depreciação da moeda local (regulação macroprudencial). Ocorre que, contrariamente às intenções externadas, a medida provisória limita expressamente a nova atribuição do CMN a intervenções da primeira espécie, deixando de unificar a regulação do mercado de derivativos e de submeter ao menos essa porção do sistema financeiro a supervisão sistêmica.

Os sistemas financeiros sofisticados desconhecem a divisão outrora marcante entre os setores bancário, de seguros e valores mobiliários. Em sua prática atual, bancos, seguradoras e empresas de valores mobiliários mutualizam riscos no interior de grupos econômicos, compartilham instrumentos negociais e infraestruturas operacionais, ofertam produtos de caráter híbrido e adotam modelos de negócio que os expõem à falta de liquidez.

Nova regra deixa de unificar as normas do segmento e de submetê-lo a uma supervisão sistêmica

Tal fenômeno de integração do mercado financeiro deu ensejo a importantes experiências de unificação da intervenção estatal. Michael Taylor celebrizou-se por advogar a atribuição das funções de regulação prudencial e proteção ao consumidor financeiro a instituições separadas e autônomas em relação ao banco central - os "twin peaks" (picos gêmeos) que dão nome ao modelo. Sua proposta foi implementada na Austrália e na Holanda, ao passo que no Reino Unido e no Japão os dois picos foram reduzidos a um, a Financial Services Authority (FSA), com competência multissetorial tanto em matéria prudencial como consumerista. Em Cingapura, foi-se mais longe, e a autoridade monetária aglutinou as funções regulatórias.

A crise americana contribuiu para a evolução da teoria e da prática relacionadas a estruturas regulatórias ótimas a partir da constatação de que a convergência de empresas, instrumentos, infraestruturas, produtos e modelos de negócio no mercado financeiro produz riscos não apenas à solidez de agentes individualmente considerados, mas à estabilidade do sistema como um todo. No atual mundo das finanças, os bancos já não são a única fonte de instabilidade. Produtos (hipotecas subprime ou Alt-A), instrumentos negociais ("securities", "credit default swaps") e alavancagem podem levar empresas de valores mobiliários (Lehman Brothers, Reserve Primary Fund) e seguradoras (AIG) ao colapso, e, com elas, todo o sistema.

Nesse contexto, a onda reformista pós-crise tem-se orientado no sentido de possibilitar a identificação e a resposta a ameaças resultantes da interação entre os elementos do mercado (empresas, instrumentos, infraestruturas e produtos). Modelos econométricos têm sido desenvolvidos para compreender as conexões entre os nós da rede financeira. Do ponto de vista estrutural, órgãos de vigilância sistêmica dotados de competência macroprudencial têm sido criados, ocupando a cúpula do sistema, como o Financial Stability Oversight Council, nos Estados Unidos; em paridade com os demais reguladores, como o European Systemic Risk Board, na União Europeia; ou no interior do banco central, como o Financial Policy Committee, no Reino Unido.

O mercado de derivativos é evidência do caráter integrado dos sistemas financeiros avançados e do risco sistêmico que tal convergência pode acarretar. Suas transações perpassam os segmentos tradicionais e ultrapassam as fronteiras do próprio mercado financeiro.

No Brasil, seus elementos estão sob a autoridade de diversos reguladores. O instrumento contratual é normatizado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que compartilha com o Banco Central (BC) a disciplina da infraestrutura de mercado (bolsas e sistema de pagamentos, respectivamente). A regulação de segurança e solidez das empresas está a cargo da CVM (corretoras e distribuidoras de valores mobiliários), do BC (bancos), da Superintendência de Seguros Privados (seguradoras) e da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (entidades de previdência complementar). A mesma divisão observa-se em relação ao regramento de produtos, acrescentando-se ao rol de reguladores a Secretaria de Direito Econômico.

Tal fragmentação acarreta ineficiências para a supervisão microprudencial e a proteção ao consumidor, uma vez que a detecção do mesmo tipo de risco ou abusividade necessita de equipes diferentes em cada setor, gerando custos e discrepâncias de avaliação. Também a supervisão macroprudencial se revela sub-ótima, visto que nenhum regulador possui competência para avaliar o risco agregado do mercado.

A MP 539 parte do reconhecimento implícito de que o mercado de derivativos ultrapassa os segmentos financeiros tradicionais, e concentra a intervenção estatal sobre ele nas mãos do CMN, o único órgão estatal com competência sobre todo o sistema. Como tal concentração se restringe a objetivos de política monetária e cambial, no entanto, a MP não atinge a desejável unificação em matéria prudencial. Por outro lado, promover tal consolidação em órgão de composição política como o CMN, integrado por três ministros de Estado, não seria a solução mais adequada.

Se o governo deseja suprir a ausência de supervisão sistêmica sobre o mercado de derivativos, a criação de um Conselho Financeiro Nacional, composto pelos reguladores setoriais e situado na cúpula do sistema ao lado do CMN, seria uma possibilidade compatível com a estrutura regulatória vigente. A solução ideal, entretanto, passaria por um rearranjo institucional mais ousado. De qualquer forma, será necessário trabalho adicional para conferir à MP 539 o alcance almejado.

Jefferson Alvares é advogado e mestre em finanças internacionais por Harvard

 

 

 

 

 

 

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